A identificação com o corpo
físico talvez seja a maior ilusão da qual padece o ser humano. É muito fácil se
confundir, já que todo dia acordamos e vemos os mesmos braços, mãos e pernas. É
o corpo que permite nossa expressão no mundo, que nos proporciona prazer e dor.
Essa forma física é o instrumento que permite a libertação, o desapego
(kaivalya).
Lidamos com o paradoxo da
importância de preservar nossa saúde, da admiração com a complexidade do
funcionamento do organismo, e, ao mesmo tempo, com o desafio de deixar de nos
identificar com o corpo.
Está chovendo e é possível
observar as gotas caindo. Segundo a filosofia do yoga, tudo que pode ser
observado é considerado um objeto. Sendo um objeto, é diferente daquele que o
observa. Portanto, num exemplo óbvio, se podemos observar a chuva, sabemos que
não somos a chuva. Disso conclui-se que, se podemos observar o corpo, sabemos
que somos diferentes do corpo. Se podemos observar o ego, a mente, os
pensamentos e as emoções, sabemos que somos diferentes de todos eles. Só que na
teoria essa distinção é muito clara; na prática, nem tanto.
Um dos fatores que mais me fez
confundir com o corpo ultimamente foi a dor. Meu corpo sofreu com uma forte
enxaqueca nos meses passados.
Incluí na rotina algumas posturas
do "Livro de Yoga e Saúde para a Mulher", de Patrícia Walden e Linda
Sparrowe, indicadas especialmente para aliviar dores de cabeça.
Experimentei substituir todas as
invertidas de Ashtanga pela postura com as pernas levantadas contra a parede,
uma adaptação da Viparita Karani, e, por mais de uma semana, evitei os saltos e
posturas que utilizam bastante força, como Bujapidasana.
Plantão Patanjali: As
experiências operam com o propósito de nos conduzir para a libertação
(Sutra
II.18).
Com isso em mente, a enxaqueca (ou outro tipo de dor) pode ser uma oportunidade para treinar observar o corpo sentindo dor e as
reações que a dor causa. Pude observar como a dor deixou a mente sem paciência
e mau humorada. Qualquer movimento era mais difícil, mesmo apenas caminhar;
cada vez que o calcanhar tocava o chão, era como se as vibrações subissem pela
perna até o topo da cabeça, fazendo o cérebro balançar. Em alguns momentos, as
emoções expressavam-se por meio de lágrimas, e esse estado provocou impressões
de desesperança, como se qualquer situação imaginada não tivesse solução.
E assim pode operar a mente de um
corpo cujos sinais nervosos são interpretados como sinais de dor. Essa
angústia, confusão mental e medo são ainda condicionamentos ou
impressões/marcas (samskara) do passado. São consequência das tentativas da
mente em encontrar maneiras para se proteger. Mesmo sabendo que em nossa
essência já somos livres, o fato é que experimentamos mudanças constantemente e
nos identificamos com elas.
Para aqueles momentos de
confusão que geram sofrimento, como a identificação com um corpo com dor,
por exemplo, Patanjali afirma que podemos substituir as marcas de
confusão/identificação por marcas de silêncio ou cessação da atividade mental
(Sutra III.9). Desencoraja-se as impressões de ruído mental e encoraja-se as
impressões de quietude. Pela filosofia do yoga, toda flutuação mental é gerada
por algum tipo de impressão (samskara). Se essa impressão é substituída por uma
impressão mais forte de cessação, há um momento de silêncio, e, nessa quietude,
podemos vislumbrar nossa verdadeira natureza como consciência. Isso representa
jnana, o conhecimento de si mesmo.
Segundo Gregor Maehle, nossos
estados de espírito possuem a tendência de provocar sua repetição. Se nos
encontramos em um momento de calma por uma hora, tal estado, por si só, irá
definir uma tendência para o futuro. Se, do contrário, estamos agitados,
deprimidos ou agressivos, haverá a tendência à repetição desses estados, devido
às marcas que são impressas. Caso constantemente exercitarmos colocar em
prática as impressões de calma ou silêncio, as impressões opostas vão
desaparecendo lentamente, a mente vai aos poucos libertando-se de sua agitação
e monotonia, tornando-se calma.
Essa técnica de alteração de
impressões (samskara) é chamada parinama, que significa transformação.
O autor ressalta que, na
aplicação dessa técnica, devemos evitar lutar com a mente, já que isso
significa agitação, e pode gerar novos estados raivosos na mente. Parinama
implica convidar a mente suavemente ao silêncio.
Patanjali divide parinama em
nirodha, samadhi e ekagrata (Sutras III.10, III.11 e III.12).
A cessação (nirodha) da atividade
mental ocorre quando somos capazes de fornecer um fluxo constante de impressões
de quietude. Na Sutra III.10, afirma-se que, aplicando-se repetidamente
impressões (samskara) de cessação de atividade, a mente se acalma. A respeito,
Maehle explica que uma impressão de silêncio pode nos dar um momento de calma,
por isso podemos continuar calmos repetindo as mesmas ou semelhantes
impressões. O autor menciona algumas técnicas para realizar essa transformação
de impressões. Repetir mantras, por exemplo, é um ato equiparado à manutenção
constante de uma mesma impressão de paz. Meditar na respiração significa
inserir repetidas impressões de calma na mente. Dessa maneira é possível criar
hábitos que auxiliam a mente a se acalmar.
Nirodha parinama seria a
transformação mais complexa entre as possibilidades apresentadas, em razão da
constância total do fluxo de quietude.
A respeito de samadhi parinama, a
Sutra III.11 define o seguinte: se a dispersão da mente for substituída por
foco ou unidirecionalidade, ocorre a transformação (parinama) ao samadhi da mente.
Maehle explica que esse tipo de
transformação deixa a mente apta ao samadhi. Vyasa, que escreveu comentários ao
Yoga Sutra, ensina que a dispersão é uma característica típica da mente,
afinal, sua tendência é anexar-se aos objetos que lhe são apresentados. No
entanto, Vyasa afirma que o foco ou unidirecionalidade é outra característica
da mesma mente.
Maehle complementa explicando
que, como os objetos que observamos estão em mudança constante, dirigir a mente
a eles resultará em dispersão. Se dirigirmos a mente para o observador, se
tornará focada ou unidirecional, devido à uniformidade daquele que observa.
Para tanto, Maehle menciona a
técnica de rejeitar todas as sugestões da mente relativamente àquilo que é
transitório, como a riqueza, os prazeres sensuais, o corpo, etc., pois se
confiarmos em objetos transitórios para garantir nossa alegria, iremos nos
desapontar. Assim, cada vez que a mente fixar-se em estímulos transitórios,
podemos simplesmente lembrar que preferimos dirigi-la ao observador.
Dessa maneira, aos poucos
deixaremos de confiar em estímulos externos para proporcionar felicidade
duradoura e a mente passará a buscá-la naquele que observa, ocorrendo samadhi
parinama: a transformação que provoca a aptidão ao samadhi.
O autor cita os dizeres de
Vijnanabhikshu, filósofo indiano que também escreveu comentários ao Yoga Sutra:
Não pode haver uma erradicação total da distração de uma vez só, nem pode
haver a realização de unidirecionalidade de uma só vez, e sim, gradualmente, a
cada momento.
A transformação mais singela
seria a prevista no Sutra III.12, chamada ekagrata parinama. Nessa técnica,
provoca-se o nascimento sequencial de ideias ou pensamentos similares ao
anterior, ininterruptamente. Patanjali descreve a relação entre essas ondas de
pensamento pelo termo tulya, que pode ser traduzido como semelhante, da mesma
espécie ou igual. Ao permanecer nesse estado, o indivíduo vai aos poucos
transformando sua mente em intelecto.
No Yoga Sutra, há uma distinção
entre mente (manas) e intelecto.
Maehle esclarece que o conceito
de manas está relacionado àquela forma de pensamento que pula de um objeto ao
outro como um macaco pula de galho em galho. A ferramenta manas foi programada
biologicamente a sempre lidar com as infinitas possibilidades apresentadas pelo
futuro ou com as infindáveis análises do passado. Todas essas probabilidades
são um tipo de combustível a esse mecanismo, e por isso essa estrutura está
sempre funcionando.
Já o intelecto possui a tendência
de focar no momento presente, concentrando sua atenção num mesmo objeto ou tema
até atingir sua compreensão total.
Treinando a mente a provocar
pensamentos ou ideias similares a respeito de um objeto, seu foco terá a
tendência de aumentar e manter-se unidirecional (ekagrata) por períodos de
tempo cada vez maiores. Pouco a pouco ocorrerá a transformação chamada samadhi
ekagrata, tornando a mente unidirecional.
Uma das principais diferenças
entre samadhi parinama e ekagrata parinama seria que, neste ainda existe um
fluxo de pensamentos ocorrendo, enquanto que naquele a mente já é capaz de atingir
a unidirecionalidade simplesmente deixando de confiar em estímulos externos (sem aplicar o pensamento diretamente).
Por essa razão, ekagrata parinama é considerado o mais singelo. Nem por isso deixa de
ser relevante, já que é a porta de entrada para a realização dos dois outros
tipos de parinama mais complexos: samadhi e nirodha.
A proposta do Ashtanga Vinyasa Yoga é justamente realizar esse treino mental, concentrando-se nas posturas, posição dos olhos, bandhas e respiração.
A libertação da ilusão que causa
o sofrimento é real e possível. Em nosso processo de parinama mental é preciso
bastante treino até que a mente torne-se livre dos padrões repetidos ao longo
de tantos anos. Esse treino também é um exercício de paciência e gratidão, já
que essa forma física que pode provocar tantas dores e sofrimentos, também é o
instrumento que permite a observação e a libertação.
(Fonte: PATANJALI, Yoga Sutra e MAEHLE, Gregor, Ashtanga Yoga: Practice and Philosohpy)
(Fonte: PATANJALI, Yoga Sutra e MAEHLE, Gregor, Ashtanga Yoga: Practice and Philosohpy)