terça-feira, 26 de novembro de 2013

Transformação

A identificação com o corpo físico talvez seja a maior ilusão da qual padece o ser humano. É muito fácil se confundir, já que todo dia acordamos e vemos os mesmos braços, mãos e pernas. É o corpo que permite nossa expressão no mundo, que nos proporciona prazer e dor. Essa forma física é o instrumento que permite a libertação, o desapego (kaivalya).

Lidamos com o paradoxo da importância de preservar nossa saúde, da admiração com a complexidade do funcionamento do organismo, e, ao mesmo tempo, com o desafio de deixar de nos identificar com o corpo.

Está chovendo e é possível observar as gotas caindo. Segundo a filosofia do yoga, tudo que pode ser observado é considerado um objeto. Sendo um objeto, é diferente daquele que o observa. Portanto, num exemplo óbvio, se podemos observar a chuva, sabemos que não somos a chuva. Disso conclui-se que, se podemos observar o corpo, sabemos que somos diferentes do corpo. Se podemos observar o ego, a mente, os pensamentos e as emoções, sabemos que somos diferentes de todos eles. Só que na teoria essa distinção é muito clara; na prática, nem tanto.

Um dos fatores que mais me fez confundir com o corpo ultimamente foi a dor. Meu corpo sofreu com uma forte enxaqueca nos meses passados.
Incluí na rotina algumas posturas do "Livro de Yoga e Saúde para a Mulher", de Patrícia Walden e Linda Sparrowe, indicadas especialmente para aliviar dores de cabeça.
Experimentei substituir todas as invertidas de Ashtanga pela postura com as pernas levantadas contra a parede, uma adaptação da Viparita Karani, e, por mais de uma semana, evitei os saltos e posturas que utilizam bastante força, como Bujapidasana.

Plantão Patanjali: As experiências operam com o propósito de nos conduzir para a libertação 
(Sutra II.18).

Com isso em mente, a enxaqueca (ou outro tipo de dor) pode ser uma oportunidade para treinar observar o corpo sentindo dor e as reações que a dor causa. Pude observar como a dor deixou a mente sem paciência e mau humorada. Qualquer movimento era mais difícil, mesmo apenas caminhar; cada vez que o calcanhar tocava o chão, era como se as vibrações subissem pela perna até o topo da cabeça, fazendo o cérebro balançar. Em alguns momentos, as emoções expressavam-se por meio de lágrimas, e esse estado provocou impressões de desesperança, como se qualquer situação imaginada não tivesse solução.

E assim pode operar a mente de um corpo cujos sinais nervosos são interpretados como sinais de dor. Essa angústia, confusão mental e medo são ainda condicionamentos ou impressões/marcas (samskara) do passado. São consequência das tentativas da mente em encontrar maneiras para se proteger. Mesmo sabendo que em nossa essência já somos livres, o fato é que experimentamos mudanças constantemente e nos identificamos com elas.

Para aqueles momentos de confusão que geram sofrimento, como a identificação com um corpo com dor, por exemplo, Patanjali afirma que podemos substituir as marcas de confusão/identificação por marcas de silêncio ou cessação da atividade mental (Sutra III.9). Desencoraja-se as impressões de ruído mental e encoraja-se as impressões de quietude. Pela filosofia do yoga, toda flutuação mental é gerada por algum tipo de impressão (samskara). Se essa impressão é substituída por uma impressão mais forte de cessação, há um momento de silêncio, e, nessa quietude, podemos vislumbrar nossa verdadeira natureza como consciência. Isso representa jnana, o conhecimento de si mesmo.

Segundo Gregor Maehle, nossos estados de espírito possuem a tendência de provocar sua repetição. Se nos encontramos em um momento de calma por uma hora, tal estado, por si só, irá definir uma tendência para o futuro. Se, do contrário, estamos agitados, deprimidos ou agressivos, haverá a tendência à repetição desses estados, devido às marcas que são impressas. Caso constantemente exercitarmos colocar em prática as impressões de calma ou silêncio, as impressões opostas vão desaparecendo lentamente, a mente vai aos poucos libertando-se de sua agitação e monotonia, tornando-se calma.

Essa técnica de alteração de impressões (samskara) é chamada parinama, que significa transformação.
O autor ressalta que, na aplicação dessa técnica, devemos evitar lutar com a mente, já que isso significa agitação, e pode gerar novos estados raivosos na mente. Parinama implica convidar a mente suavemente ao silêncio.

Patanjali divide parinama em nirodha, samadhi e ekagrata (Sutras III.10, III.11 e III.12).

A cessação (nirodha) da atividade mental ocorre quando somos capazes de fornecer um fluxo constante de impressões de quietude. Na Sutra III.10, afirma-se que, aplicando-se repetidamente impressões (samskara) de cessação de atividade, a mente se acalma. A respeito, Maehle explica que uma impressão de silêncio pode nos dar um momento de calma, por isso podemos continuar calmos repetindo as mesmas ou semelhantes impressões. O autor menciona algumas técnicas para realizar essa transformação de impressões. Repetir mantras, por exemplo, é um ato equiparado à manutenção constante de uma mesma impressão de paz. Meditar na respiração significa inserir repetidas impressões de calma na mente. Dessa maneira é possível criar hábitos que auxiliam a mente a se acalmar.
Nirodha parinama seria a transformação mais complexa entre as possibilidades apresentadas, em razão da constância total do fluxo de quietude.

A respeito de samadhi parinama, a Sutra III.11 define o seguinte: se a dispersão da mente for substituída por foco ou unidirecionalidade, ocorre a transformação (parinama) ao samadhi da mente.
Maehle explica que esse tipo de transformação deixa a mente apta ao samadhi. Vyasa, que escreveu comentários ao Yoga Sutra, ensina que a dispersão é uma característica típica da mente, afinal, sua tendência é anexar-se aos objetos que lhe são apresentados. No entanto, Vyasa afirma que o foco ou unidirecionalidade é outra característica da mesma mente.
Maehle complementa explicando que, como os objetos que observamos estão em mudança constante, dirigir a mente a eles resultará em dispersão. Se dirigirmos a mente para o observador, se tornará focada ou unidirecional, devido à uniformidade daquele que observa.
Para tanto, Maehle menciona a técnica de rejeitar todas as sugestões da mente relativamente àquilo que é transitório, como a riqueza, os prazeres sensuais, o corpo, etc., pois se confiarmos em objetos transitórios para garantir nossa alegria, iremos nos desapontar. Assim, cada vez que a mente fixar-se em estímulos transitórios, podemos simplesmente lembrar que preferimos dirigi-la ao observador.
Dessa maneira, aos poucos deixaremos de confiar em estímulos externos para proporcionar felicidade duradoura e a mente passará a buscá-la naquele que observa, ocorrendo samadhi parinama: a transformação que provoca a aptidão ao samadhi.
O autor cita os dizeres de Vijnanabhikshu, filósofo indiano que também escreveu comentários ao Yoga Sutra: 

Não pode haver uma erradicação total da distração de uma vez só, nem pode haver a realização de unidirecionalidade de uma só vez, e sim, gradualmente, a cada momento.

A transformação mais singela seria a prevista no Sutra III.12, chamada ekagrata parinama. Nessa técnica, provoca-se o nascimento sequencial de ideias ou pensamentos similares ao anterior, ininterruptamente. Patanjali descreve a relação entre essas ondas de pensamento pelo termo tulya, que pode ser traduzido como semelhante, da mesma espécie ou igual. Ao permanecer nesse estado, o indivíduo vai aos poucos transformando sua mente em intelecto.

No Yoga Sutra, há uma distinção entre mente (manas) e intelecto.
Maehle esclarece que o conceito de manas está relacionado àquela forma de pensamento que pula de um objeto ao outro como um macaco pula de galho em galho. A ferramenta manas foi programada biologicamente a sempre lidar com as infinitas possibilidades apresentadas pelo futuro ou com as infindáveis análises do passado. Todas essas probabilidades são um tipo de combustível a esse mecanismo, e por isso essa estrutura está sempre funcionando.
Já o intelecto possui a tendência de focar no momento presente, concentrando sua atenção num mesmo objeto ou tema até atingir sua compreensão total.
Treinando a mente a provocar pensamentos ou ideias similares a respeito de um objeto, seu foco terá a tendência de aumentar e manter-se unidirecional (ekagrata) por períodos de tempo cada vez maiores. Pouco a pouco ocorrerá a transformação chamada samadhi ekagrata, tornando a mente unidirecional.

Uma das principais diferenças entre samadhi parinama e ekagrata parinama seria que, neste ainda existe um fluxo de pensamentos ocorrendo, enquanto que naquele a mente já é capaz de atingir a unidirecionalidade simplesmente deixando de confiar em estímulos externos (sem aplicar o pensamento diretamente). Por essa razão, ekagrata parinama é considerado o mais singelo. Nem por isso deixa de ser relevante, já que é a porta de entrada para a realização dos dois outros tipos de parinama mais complexos: samadhi e nirodha.

A proposta do Ashtanga Vinyasa Yoga é justamente realizar esse treino mental, concentrando-se nas posturas, posição dos olhos, bandhas e respiração.

A libertação da ilusão que causa o sofrimento é real e possível. Em nosso processo de parinama mental é preciso bastante treino até que a mente torne-se livre dos padrões repetidos ao longo de tantos anos. Esse treino também é um exercício de paciência e gratidão, já que essa forma física que pode provocar tantas dores e sofrimentos, também é o instrumento que permite a observação e a libertação.

(Fonte: PATANJALI, Yoga Sutra e MAEHLE, Gregor, Ashtanga Yoga: Practice and Philosohpy)

quarta-feira, 31 de julho de 2013

Chitta vrtti

Segundo Gregor Maehle, quando a mente recebe estímulos sensoriais relacionados a um objeto, sua atividade comum é rapidamente compará-los com os dados que temos armazenados no passado, relacionados a todas nossas experiências anteriores que foram deixando suas marcas. Em seguida, é produzida a mais provável interpretação do que acredita ser aquele objeto.

Podemos analisar a seguinte situação: os sentidos relatam para a mente um estouro alto e ela diz, "Explodiu uma bomba nas proximidades – Proteja-se!". O funcionamento típico da mente é sempre analisar o impacto que um objeto tem sobre nós, seja para verificar se ameaça nossa sobrevivência, seja para calcular nossos ganhos.

Nossa rotina é dinâmica e essa relativa superficialidade é muito útil em algumas situações. No trânsito, durante reuniões ou em diversos casos que exigem uma ação rápida, nem sempre temos tempo de investigar a essência de todos objetos. 

No entanto, essa análise superficial das aparências pode nos fazer ignorar a profunda realidade subjacente de um objeto, e essa é uma das causas de nosso sofrimento (duhkha). No Yoga Sutra de Patañjali, o conceito de objeto refere-se também ao corpo, a respiração, aos sentidos, ao processo de percepção, ao senso de individualidade, ao intelecto, etc. 

Dessa forma, se acabamos por analisar apenas superficialmente nosso senso de individualidade, por exemplo, acabamos nos confundindo com nosso corpo, emoções ou pensamentos, que são transitórios, e esquecemos que nossa essência, a consciência (purusha), é imutável. Essa identificação com aquilo que é transitório foi definida no Yoga Sutra como avidya, a ignorância, considerando que ignoramos nossa real natureza.

Como afirma Maehle, uma das características da mente é refletir os objetos que a ela são dirigidos, como se fosse a superfície de um lago. Por isso, uma mente agitada, repleta de flutuações, irá refletir objetos um tanto quanto "deformados", como se estivéssemos observando nossa imagem num lago com muitas ondulações.

Nas sutras I.2 e I.3, Patañjali afirma que, quando as flutuações da mente (chitta vrtti) são suspensas, podemos repousar em nossa verdadeira natureza, pois nesse caso a mente é capaz de refletir os objetos exatamente como são, e a consciência pode experimentá-los diretamente. Esse é o significado de samadhi, a verdadeira experiência direta.

Quando a mente reflete objetos com flutuações, a consciência parece assumir a forma das modificações da mente (Sutra I.4), causando a identificação com aquilo que é impermanente e gerando sofrimento. Passamos a enxergar a realidade indiretamente, através de diversos filtros mentais. Esse conceito dos filtros é utilizado também pelos ocidentais, como é o caso de Richard Bandler e John Grinder.

Para ilustrar a atividade mental, Maehle descreve o conto budista de um elefante que está sendo apresentado a quatro homens cegos para identificação. O primeiro encosta no tronco e acredita que o elefante é uma espécie de tubo; o segundo segura a orelha e acredita ser uma folha de papel; o terceiro pega a perna e acredita que o animal seja um tronco de árvore, e o último toca o rabo e acredita que o elefante é um pincel.

O autor explica que de forma semelhante a mente enxerga apenas parte de um objeto devido à nossa cegueira interior, ao passo que a natureza intrínseca do objeto está escondida da nossa vista. Este processo é chamado de apreensão, ignorância ou ilusão. Ao colocar camadas sobre camadas de ilusão, a mente acredita estar se aproximando da verdade.

Embora essa atividade mental dinâmica e superficial seja útil nas tarefas do cotidiano, pode também nos impedir de experimentar a realidade profunda dos objetos. Patañjali propõe um refinamento das atividades da mente, a fim de transformá-la em intelecto, por meio da compreensão, ao invés da apreensão (trataremos detalhadamente das técnicas relacionadas e das diferenças entre mente, intelecto e ego nas próximas publicações). Nesse caso, utilizaríamos a mente apenas quando necessário.

Compreensão ocorre quando as ondulações desaparecem e a consciência pode ter uma visão cristalina do objeto. Compreendemos então que não somos o corpo, a mente, os pensamentos, as emoções, o ego ou o intelecto. Somos purusha (consciência).

Praticar yoga em geral nos ajuda a lembrar de nossa real natureza, já que auxilia a acalmar as ondulações. Cada tipo de personalidade irá se identificar com as diferentes escolas.

Durante a prática de Ashtanga, minha professora sempre nos lembra que "vocês não são o corpo, e é apenas o corpo que está doendo", ou "não é o corpo que está cansado, é a mente que está cansada". Ao levantar da cama de manhã cedinho, repito pra mim mesma "é apenas o corpo que tem sono". Saindo do banho no frio "é apenas o corpo que sente frio, não eu". Existem diversas possibilidades divertidas de dissociação.

Esse conhecimento discriminativo pode transformar nossas vidas. Podemos treinar observar as emoções e os pensamentos; observar a mente tentando assegurar nossa sobrevivência; observar o ego, etc., ao invés de nos identificarmos com eles. Esse treino traz muita paz.


(Referências bibliográficas: Yoga Sutra de Patañjali e "Ashtanga Yoga", Gregor Maehle, New World Library, 2007)

terça-feira, 30 de julho de 2013

Tédio e trishna

É comum que alguns praticantes tornem-se entediados após terem feito a série primária por vários anos ou meses. Já experimentei essa sensação, especialmente nas posturas fundamentais, e ficava secretamente desejando chegar logo nas posturas sentadas (rs). No entanto, como nos lembra Maehle, qualquer sinal de tédio nos mostra apenas que a mente está deixando de descansar no momento presente.

Pode ser fácil confundir a espontaneidade com a incapacidade de manter a mente focada. Muitas vezes deixei a mente divagar e permiti que diversos tipos de sentimentos negativos viessem à tona, sob o pressuposto de expressar uma suposta liberdade ou individualidade, ignorando o fato de que tais pensamentos eram, na realidade, o resultado de raiva, inveja, ciúme, etc. Ou seja, era uma espontaneidade baseada em tendências inconscientes (samskaras).

Em vez de tornar-nos livres nos desapegando da raiva, nós acabamos carregando-a em nossa prática, fazendo com que a prática se torne difícil ou tediosa. A mente anseia pelo shavasana desde padangushthasana, ou fica imaginando quando vai fazer a transição para a série intermediária.
Esta forma de sofrimento antecipado pode ser tanto uma manifestação de aversão (dvesha), quanto de desejo (trishna). Seja pela aversão ou pelo desejo, ambos impossibilitam desfrutar o presente, nos fazendo agir com base num condicionamento passado. Isso se reflete no termo "existência condicionada" (samsara). O oposto da existência condicionada é quando experimentamos a cada momento com frescor, como se fosse a primeira vez.

É praticamente certo que, durante nossa prática, certos acontecimentos irão testar nossa força de vontade e determinação, especialmente para os praticantes de Yoga Chikitsa, a série primária, que é terapêutica e purificadora. Os efeitos da purificação podem ser desagradáveis, dependendo de nossas ações passadas, só que apenas temporariamente. Pouco a pouco o sobe e desce de emoções se acalma e as dores diminuem (físicas e emocionais).

Exercitar trazer a mente de volta ao momento presente é um treino que aumenta nosso foco, além de ser um componente essencial da prática de Ashtanga. Esse treinamento irá refinar a mente (manas), a fim de transformá-la em buddhi (intelecto), e isso vai se refletir positivamente em todos os âmbitos de nossa vida.
Quando menos esperamos, o tédio, a aversão e o desejo são substituídos por uma apreciação gentil de cada postura, de cada momento.

Qual é nosso grau de comprometimento no caminho para a libertação?

Como diz Patanjali, liberdade é residir em nossa verdadeira natureza de consciência.
(Yoga Sutra I.3)

(Referência bibliográfica: Maehle, Gregor. Ashtanga yoga. New World Library, 2007)